A Qualidade em Saúde e a Segurança do Doente
Margarida França
Administradora Hospitalar, Vice-Presidente da APAH*, Presidente da
SPQS**,
Mestrado em Gestão e Economia da Saúde
*
Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares
**
Sociedade Portuguesa para a Qualidade na Saúde
A Qualidade em saúde quase
se tornou “um lugar comum” e uma referência habitual em qualquer discurso de
índole técnica ou política entre os excessos das “falhas” da qualidade à
“excelência da “qualidade”. Contudo, raramente estes conceitos são acompanhados
de uma definição de conceitos que permita precisar os conteúdos subjacentes às
ideias apresentadas de uma forma tão generalista. No mesmo sentido, a
publicação de rankings que
classificam hospitais com base em parâmetros não consensuais e muitas vezes
pouco transparentes. Difunde-se, também, a mensagem que a qualidade decorrente
ou implícita ao desempenho das organizações e sistemas de saúde deixou de ser
suficiente, sendo agora necessário apresentar bases cientificas relevantes e
consistentes.
A entrada em vigor, em 25
de outubro de 2014, da diretiva relativa ao
exercício dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços,
Diretiva 2011/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2011,
veio realçar esta necessidade de evidenciar e documentar de forma clara e
transparente a qualidade e segurança dos cuidados de saúde prestados.
Ultrapassada também se
encontra a ideia de que níveis mais elevados da qualidade exigem grandes investimentos
ou grandes reformas estruturais.
É, pois, sobre estas
questões que gostaria de suscitar a reflexão no sentido de contribuir para a
clarificação destes conceitos e objetivos.
Com a publicação em 1999
do Relatório “To Err is Human” do Instituto de Medicina Americano (IOM) a
temática da segurança do doente assumiu uma preponderância ao nível mundial que
levou, aliás, à criação, em outubro de 2004, da World Alliance for Patient Safety por parte da Organização Mundial
da Saúde (OMS). O IOM procedeu no quadro
daquela publicação e do Relatório subsequente “Crossing the Quality Chasm” à
definição de seis metas de melhoria, nomeadamente a segurança do doente,
efetividade dos cuidados, centralização no doente, oportunidade dos cuidados,
eficiência e equidade.
Donald Berwick prefere
transmitir a mesma mensagem através de cinco declarações de intenção de grande
força e impacto: “No needless death. No
needless pain. No helplessness. No unwanted waiting. No waste” numa
perspetiva de equidade, ou seja, para todos os cidadãos.
Já no ano de 2006, o documento
que define o modelo conceptual de base do Health Care Quality Indicator Project
da OCDE, apresentava uma recolha das dimensões usadas por diversos Países na
avaliação do desempenho e na definição de indicadores da qualidade, aparecendo
em primeiro lugar a efetividade, seguido da acessibilidade, centralização do
doente, eficiência, equidade, segurança, continuidade, competência, adequação,
aceitabilidade, oportunidade e, por último, a capacidade e a sustentabilidade.
Como se afigura lógico e
racional, o caráter multidimensional da Qualidade em Saúde acrescenta
complexidade ao processo da sua avaliação e correspondente melhoria. A Joint
Comission on Healthcare Organizations
(JCHCO) definia, no ano de 1971, as dimensões do desempenho dos cuidados de
saúde como os atributos do sistema, definíveis e preferencialmente mensuráveis,
que estão relacionados com o seu
funcionamento para manter, restaurar ou melhorar a saúde.
A Segurança do Doente emergiu
com os relatórios referidos e tem, nos últimos anos, recebido a maior atenção
aos níveis internacionais e nacional. Portugal, através da Direção Geral da
Saúde tem participado nas mais emblemáticas campanhas da OMS como a “Campanha Nacional
de Higiene das Mãos”, a “Cirurgia Segura Salva Vidas” e a “Resistência aos
antimicrobianos”.
Peter Pronovost trabalhou
o paradigma clássico de Donabedian – estrutura, processo, resultado – na
construção de um modelo para medir o
progresso da segurança do doente através da adição de um quarto elemento – a
cultura.
Têm sido, pois,
significativos os desenvolvimentos da Qualidade em Saúde da última década. Uma
vez ultrapassado o desafio de transposição das metodologias e ferramentas
usadas na melhoria da qualidade no sector industrial, o esforço concentra-se,
agora, na procura da sua efetividade.
A investigação em
qualidade na saúde foi alvo de investimento considerável nas últimas décadas no
sentido de obtenção de respostas que possam contribuir para uma ação mais racional
e efetiva. Contudo, as conclusões de estudos recentemente realizados e em que
Portugal participou, nomeadamente o QUASER e o DUQuE, confirmam a persistência
de variações significativas na qualidade e na segurança dos cuidados de saúde
entre Países e entre regiões do mesmo País.
Mas dado que o número de
ferramentas e processos de melhoria da qualidade é imenso, é legítimo perguntar
Como e Onde começar? Que ação
ou Que Mudança escolher para que
possamos obter melhorias reais?
Sabemos já que nem todas
as situações de melhoria exigem grandes campanhas ou sistemas de grande porte,
crescendo a ideia das soluções que pela inovação ou aplicação organizada e
sistemática são fator de mudança e melhoria.
Sabemos, também, que
melhores resultados exigem intervenções sistemáticas e continuadas das
ferramentas de gestão da qualidade.
Neste mesmo sentido, as
conclusões dos Relatórios – Francis
Report e Berwick Report – que escrutinaram o caso sentinela ocorrido em
Inglaterra no Mid Staffordshire Trust
e que colocam a tónica na complexidade da prestação dos cuidados de saúde e na
evidência de a qualidade e segurança não serem automáticas, mas antes, exigirem
a atenção permanente dos líderes dos diversos níveis de gestão, sob pena de o
risco associado aos cuidados crescer descontroladamente.
De facto, como entender
no quadro de um Serviço Nacional de Saude moderno e de referência mundial, que um
conjunto de problemas no seio de um hospital possa ser causa de mortes e danos evitáveis?
Como entender que após
tanto esforço e empenho na inovação da medicina e das organizações da saúde, possa
acontecer uma situação trágica como esta do Mid
Staffordshire Trust?
Todas as dimensões da
qualidade em saúde referidas no presente texto são importantes, sendo que a
gravidade e consequente mediatismo deste e outros casos recentes, reforçaram a
atenção na Segurança do Doente. Mas novas situações podem vir a colocar a tónica
em outras questões ou dimensões, como a equidade e a oportunidade dos cuidados no
âmbito ou como consequência de situações particulares, como a atual de
agudização da situação económico-financeira do país.
Resta-nos, pois, assumir a Qualidade
em saúde na sua globalidade, usando o desdobramento das suas dimensões no
sentido da sua melhor abordagem para obtenção dos melhores resultados no quadro
da constante evolução e mutabilidade das realidades e ambientes da saúde.
Bibliografia
·
BERWICK, Donald M. Promising
CARE. How We Can Rescue Health Care by Improving It. Institute Healthcare
Improvement, Jossey-Bass, San Francisco, 2014, 278.
·
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The Quality Chasm. A New Health System for the 21st Century. National Academy Press. IOM, Washington
D.C., 2001, 337.
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Kohn, L, J. Corrigan e M. Donaldson. To Err is Human. Building a Safer Health System. National Academy Press, IOM,
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·
OECD. Health
Care Quality Indicators Project. Conceptual Framework Paper, «OECD HEALTH
WORKING PAPERS Nº 23» Directorate For Employment, Labour and Social Affairs
Employment, March 2006: 36
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