A
importância dos registos clínicos para a avaliação da produção e o
financiamento hospitalar
Fernando Lopes
Assessor, Departamento de Ciências da Informação e da
Decisão em Saúde, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Médico Auditor da Codificação Clínica, Centro Hospitalar
de São João
Presidente, Associação dos Médicos Auditores e
Codificadores Clínicos
O sistema de
classificação dos episódios de internamento em hospitais de agudos em Grupos de
Diagnósticos Homogéneos (GDH) foi criado na década de 60 na Universidade de
Yale, nos EUA, com o objetivo de servir de base a sistemas de revisão de
utilização com os quais se identificassem variáveis que pudessem explicar os
tempos de internamento. A metodologia dos GDH baseou-se nos elementos disponíveis
nos resumos de alta dos doentes, em especial o diagnóstico principal, os
diagnósticos secundários, as intervenções cirúrgicas e a idade dos doentes.
Com o progressivo desenvolvimento
e a melhoria deste sistema de classificação tornou-se evidente a sua utilidade
para o estabelecimento de um sistema de pagamento prospetivo (SPP) com o qual o
hospital recebe a mesma quantia por cada doente que pertença ao mesmo GDH. O
preço é fixado prospectivamente, de maneira que o hospital conheça o que vai
receber por cada doente e possa, desse modo, e com base na atividade
programada, determinar os valores do seu orçamento (custos e proveitos).
Embora este sistema tenha
sido implementado em Portugal, por determinação
da Secretario de Estado da Administração da Saúde, o financiamento dos
hospitais só a partir de 1996 deixou de ser calculado com base no histórico
indexado pela inflação e passou a ser efetivamente influenciado pela produção
realizada e avaliada utilizando os GDH, em percentagem progressivamente
crescente de ano para ano.
No sistema de
classificação em GDH interferem no
agrupamento (1) o diagnóstico principal, (2) os diagnósticos adicionais, (3) os
procedimentos, em especial os cirúrgicos, (4) a idade, (5) o sexo, (6) o
destino após a alta e (7) o peso no caso dos recém-nascidos. São estas
variáveis que, com maior ou menor peso, refletem as caraterísticas do doente e
da doença típicas de cada GDH: severidade da doença (perda de função e
mortalidade), prognóstico (probabilidade de melhoria ou de deterioração, de
recorrência e de expectativa de vida), dificuldade no tratamento (sofisticação
e dificuldade dos procedimentos), necessidade de intervenção e intensidade no
consumo de recursos. Destes vários parâmetros devem relevar-se os diagnósticos
adicionais já que é evidente que tratar uma pneumonia num doente previamente
saudável ou num doente com insuficiência cardíaca, bronquite crónica, diabetes
descompensada, neoplasia pulmonar ou que faz diálise, só para citar alguns
exemplos, é totalmente diferente.
Operacionalmente, para
que um episódio de internamento seja agrupado num determinado GDH, é necessário
que as informações nele registadas sejam codificadas e que os códigos assim
obtidos sejam introduzidos no algoritmo de agrupamento juntamente com as outras
variáveis atrás referidas. São os médicos codificadores os responsáveis por
esta tarefa que passa pela leitura do processo clínico de cada episódio de
cuidados, identificação dos diagnósticos e dos procedimentos nele registados e
seleção dos códigos adequados da
International
Classification of Diseases, 9th Revision, Clinical Modification (ICD-9-CM)
.
Os diagnósticos
adicionais de cuja presença, estatisticamente, resulta o prolongamento da
estadia do doente em pelo menos um dia e em 75% dos casos, são considerados
complicações ou comorbilidades (CC), podem interferir no agrupamento e originar
um GDH de maior peso. Mas se o registo clínico for incompleto ou impreciso, ou
se o médico codificador não identificar os diagnósticos de complicação ou de
comorbilidade, o hospital pode ter um prejuízo real porque os GDH não
refletirão corretamente a produção realizada e o financiamento será inferior.
Este é apenas mais um dos
motivos pelos quais os médicos hospitalares devem fazer registos clínicos
adequados ao doente em tratamento. Para além das informações registadas serem
utilizadas por outros colegas quando chamados a colaborar na prestação de
cuidados, do histórico assim obtido ser imprescindível quando o doente é
posteriormente admitido, da codificação armazenada na base de dados dos GDH ter
um valor inestimável em inúmeros estudos epidemiológicos e dos registos serem o
único meio de um médico acusado de negligência poder demonstrar que esteve
presente, que observou o doente e que prestou cuidados, só a exaustividade da
informação pode permitir uma adequada classificação dos episódios em GDH, uma
correta avaliação da produção e um financiamento justo.
A utilização de
determinadas normas pode ajudar o médico a melhorar os seus registos. Por
exemplo, a conformidade com a norma SOAP (Subjetive,
Objective, Assessment & Plan) permitirá não esquecer o que é essencial
na elaboração dos diários. A estruturação oferecida por uma aplicação como o
SAM, no preenchimento dum relatório de alta, é um incentivo, por exemplo, ao
registo dos problemas ou da evolução da condição do doente ao longo do episódio
de internamento. Do mesmo modo a estruturação dum relato operatório poderá
conduzir a um registo dos achados à inspeção do local operado, dos
procedimentos realizados, dos dispositivos implantados, e de intercorrências
operatórias, tantas vezes esquecidas.
Para que não haja
diferenças na codificação efetuada por médicos codificadores diferentes, em
alturas ou em hospitais distintos, o sistema de classificação de doenças
utilizado, a ICD-9-CM, tem um conjunto de instruções e de normas
aplicáveis às quais se vão acrescentando consensos, emitidos pela Administração
Central do Sistema de Saúde (ACSS), sempre que necessário. Estão, assim,
criadas as condições para a codificação clínica seja aplicada segundo normas
precisas e sem desvios, e estabelecido o âmbito das necessárias auditorias
interna e externa.
Resta ao médico
responsável pelo doente, a quem compete registar o que observa e os cuidados
prestados, fazê-lo com o zelo e a exaustividade que garantam que, para além dum
diagnóstico principal, todos os diagnósticos adicionais sejam mencionados para
que sejam tidos em conta na altura da codificação e do agrupamento em GDH e,
consequentemente, a instituição em que trabalha seja justamente ressarcida dos
custos dos doentes tratados e possa mesmo, através duma gestão eficiente, ter
uma margem para investimento e melhoria sustentada.
O modelo atual de
financiamento hospitalar, implementado nos contratos-programa
,
estabelece um preço único por episódio de internamento que, para este ano de 2014,
é de 2120,28 €. Poder-se-ia pensar que, se todos os doentes valem o mesmo, não se
justificará uma grande exaustividade dos registos. Mas há que ter em conta que
o financiamento da instituição, embora baseado no preço único contratualizado,
é indexado por um indicador, o índice de casemix
,
calculado a partir da produção e que mede a sua complexidade relativamente aos
outros hospitais.
Para o cálculo do casemix
contribuem, por um lado, os pesos relativos (PR) da cada GDH, definidos por
portaria
e, por outro, o número de doentes equivalentes, calculados a partir dos tempos
de internamento. Os pesos relativos dos GDH refletem a complexidade: os GDH
resultantes de cuidados mais diferenciados ou com diagnósticos adicionais de
complicação e/ou comorbilidade (CC) têm um peso mais elevado. A sépsis, por
exemplo, é um dos diagnósticos adicionais que mais interferem no PR. Esta é
mais uma razão para a necessidade de registos exaustivos: se as comorbilidades
existentes não forem registadas e codificadas, os episódios não serão agrupados
nos GDH de CC que as preveem, o índice de casemix do hospital não refletirá a
complexidade dos cuidados e o financiamento não será por ele indexado como
seria justo.
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